sábado, 30 de dezembro de 2017

Poema de encomenda











Camila foi à cidade
comprou especiarias
para temperar a vida,
mantimentos para dar substância
para uma boa infância
e, por precaução,
um tanto de cabelos de anjo
para fazer um bebê no capricho.
Depois passou na oficina do poeta
e encomendou um poema para o menino
que vai chegar depois do carnaval
que já chuta, samba e até batuca.
Seja bem vindo, pequenino Luca.

Queridos inimiguinhos



Todos guardam na memória
dos tempos de criança
alguns inimiguinhos
que empatavam o jogo,
turvavam a água,
entornavam o caldo,
puxavam o tapete
e teimavam em dizer
que a gente é que era o adversário,
ou seja, faziam tudo ao contrário.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Manual de mágica


Basta um manual, uma cartola
e uma capa com estrelas
para começar a tirar moedas das orelhas,
adivinhar cartas sem olhar,
ler pensamentos a torto e direito,
até se cansar, tirar a cartola
e sacudir a capa
para as estrelas voltarem ao céu.




Nossa Senhora das Andorinhas

Parece que este ano
há mais andorinhas
que vieram em migração
e fazem seus ninhos
na igrejinha de Nossa Senhora de Belém,
que durante o verão passa a ser
Nossa Senhora dos passarinhos também.



quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Foram os poetas?



Régis, meu filho,
quem pôs os nomes nas flores
angélicas, copos de leite,
chuvas de prata, jacintos,
helicônias, palmas,
rosas, centáureas,
dálias, margaridas,
amarílis, flor de lis...?
Sei não, pai, só sei que quem planta flores
ganha de brinde as mariquitas e os colibris.

Viver de poesia



O colibri riscou o jardim de leste a oeste,
de norte a sul,
matou a fome com néctar das flores
e a sede com uma gota de orvalho
e começou a fazer as visitas de cortesia
a beijar angélicas, amarílis e margaridas,
como eu queria fazer um dia,
mas como não vivo de poesia
e tenho que sair para trabalhar,
ponho um ponto no poema
e o beija-flor fica no ar.

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

O "sem coração".



Quando a gente ainda era "bicho do mato"
um diabo vestido de doutor nos visitou
olhou o bananal, os pés de café,
as flores de minha avó,
achou tudo muito bonito demais
para aquela família tão pobre de posses
e propôs um preço vil
pela casa, terras, plantações,
desde os morros até ao rio.
Meu avô esconjurou, fez o sinal da cruz,
o mandou embora e depois chamou minha atenção:
- Meu filho, é preciso sabedoria
para reconhecer aquele que não tem coração.

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Feliz Natal




O menino Jesus nasceu, chorou um pouco,
foi acarinhado pela mamãe que o amamentou
e agora está dormindo no berço de palha
cercado de bichos e pessoas
que o olham e escutam, admirados,
os anjos que cantam louvores
totalmente explicáveis pelo profeta Isaías:
a promessa afinal se cumpriu, aleluia!

domingo, 24 de dezembro de 2017

Mas no final a poesia vencerá




Corte de verba da educação,
redução de investimentos,
fechamento de hospitais,
economia de mercado,
jogo com baralho marcado,
marche, ordinário,
ordem e retrocesso,
déficit social, superávit primário.
No governo da oligarquia
não tem vez para a poesia.

Pausa para balanço



Na rua dos prédios intimidadores
tem uma estreita viela
que acaba em um quintal
onde pode-se notar uma pitangueira,
um limoeiro, roseiras
e uma goiabeira com um balanço.
E no balanço tem uma criança que brinca
de vai e vem sobre o planeta.


Recorte de documento antigo




Saibam quantos o presente edital virem
ou dele conhecimento tiverem,
que pretendem casar-se,
ele, José de Tal,
nascido aos 15/08/1913,
nacionalidade brasileira,
nascido, residente e domiciliado
neste município;
ela, Maria das Mercês,
nascida aos 03/07/1920,
nacionalidade brasileira,
nascida, residente e domiciliada
nesta freguesia...
e o resto virou poesia.


quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Mudando o destino










Lagarta que assusta
vira borboleta que encanta;
pororoca faz o rio correr ao contrário;
ostra ferida
produz pérola para não sentir dor;
a vida vence a morte: ressurreição;
Davi enfrentou Golias;
bem-te-vi bate no gavião;
besouro não foi feito pra voar,
mas, na boa, ele voa.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Eu estava lá



Naquele tempo o mundo era das crianças
e as mães as deixavam brincar
em grupo ou a sós com o anjo da guarda,
então o menino desceu a estrada da praia
e chegou à capela de S. João
de frente para a baía da Fortaleza,
e ficou admirando o Atlântico.
No mar tinha um cardume de sardinhas se deslocando,
atrás delas os botos fazendo evoluções
como um balé ensaiado
e gaivotas que se atiravam às ondas, suicidas,
que nada, foram mergulhos
para deixarem o menino maravilhado.







Céu nos olhos




Fabiano Lopes, meu bisavô,
de tanto cismar com os mistérios
e ficar olhando as nuvens
para tentar flagrar os anjos
na brincadeira de esconder
entre os estratos e os cúmulos
nunca viu nenhum deles no céu
porque estava sempre com os pés no chão.

sábado, 9 de dezembro de 2017

Má pedagogia





Se as origens não fossem tão humildes,
o rumo da vida do menino
já estaria traçado desde o berço
casa-escola-emprego-sucesso
e nada ficaria no improviso
como de fato aconteceu:
andou, tropeçou, catou os cacos,
reergueu-se, caiu acolá
até acertar o caminho por outras vias.
Aprender com as quedas
é a pior das pedagogias.


Palavras em nheengatu


O mais analfabeto dos meus avós
sabia costurar rede de pesca,
sabia onde o peixe se escondia
e conhecia-os todos pelos nomes,
gornia o cabo de içar os panos
para a canoa correr no vento
e usava palavras proibidas
pelo decreto do Marquês do Pombal:
charungo é armadilha para tatu,
tacuruba é fogão rústico,
carapirá é o pássaro fragata
e com ele aprendi
que taturana não existe,
o certo é tatarana.


segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Poema para Ana Maria















Qualquer dia desses
eu gostaria que você acordasse, de novo,
menina que reparava nas flores e nas borboletas,
e nunca nas pedras que haviam no caminho.
Que contava histórias de viagens
e lugares que conheceria
enquanto somava os trocados
para comprar um enfeite para os cabelos,
como se pudesse melhorar
o que já estava perfeito.
Que colocava um LP para tocar
e dançava até depois
que a música já tinha terminado.
Eu gostava, mana, quando havia
um pouco do mundo da lua
na rotina do dia-a-dia.






sábado, 2 de dezembro de 2017

Elegia











Meus amigos, minhas amigas,
vocês repararam que nos últimos dias
o tempo esteve chuvoso e tristonho?
Alguém ouviu alguma catira,
fandango, toada de congada,
alguém ouviu algum passarinho cantar?
É que anteontem
arrebentou a última corda da viola
do mestre Benedito Fernandes de Cristo.
Chorem de saudades, amados meus,
mas fiquem sabendo que um clarão de sol
acabou de avisar
que Benedito Fernandes já foi presenteado
com uma nova viola por São Gonçalo do Amarante
e já está ensaiando um novo ponteado.
.



quinta-feira, 30 de novembro de 2017

A primeira vez que o menino voou



Menino era ainda pequeno e estava doentinho,
então desejou voar e voou,
igualzinho voa o pássaro carapirá.
Do alto viu o tamanho do mundo,
uma maravilha,
com as terras se desdobrando em outras terras
e o mar se perdendo sem acabar
até ao horizonte onde some.
Mãe então o chamou para comer banana assada
e findou o voo na vertigem da fome.


terça-feira, 21 de novembro de 2017

Quando eu vivia no meio natural



Este que está na sua presença não sou eu,
este sujeito de calças, camisa social, o escambau,
passando calor no país tropical,
pagando o pecado de Pai Adão
e perdido em meio à civilização, não sou eu.
Minha alma está no meio do mato
prestando atenção na arenga dos pássaros
para saber onde tem cambucá maduro,
araçá amarela, bacupari e ai!, o cambuci.



sábado, 18 de novembro de 2017

Matéria-prima




Tem gente que ajunta postais,
outros guardam fotografias,
eu coleciono histórias
para fabricar poesias.


A casa do artista





No bairro mais colorido,
na rua mais alegre,
na casa que mais parece
que saiu do reino de Renoir,
mora o pintor Vicente,
que veio migrante
com a missão de colorir o Brasil,
e, até o presente momento,
meia tarefa ele já cumpriu.






terça-feira, 14 de novembro de 2017

Sonhos siderais



O planeta gira em volta do Sol,
que gira em torno da galáxia,
que gira solta no universo,
que também gira, gira, gira
desde que foi sonhado,
porque nem tudo que existe
teve que ser criado.

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Sondando o tamanho do nada




Fui dar uma espiadinha
no começo dos tempos
e não gostei do vi,
não tinha tempo nenhum lá.
Fui checar como começou
a criação do espaço,
e o espaço não existia.
Fiquei tomado de angústia,
igual criança que, de repente,
se perde da família.

sábado, 4 de novembro de 2017

Canção para Ubatuba











Alô, lugar onde eu nasci,
quantas saudades eu estava
das matas que descem da serra
como uma onda verde sobre o mar,
das cachoeiras das nascentes entre as nuvens
que trazem lá do céu algo que acalma
e cura as dores da alma.
Ai, que vontade de mergulhar
nas águas do presente
e emergir no tempo dos caiçaras
donos do lugar,
com a restinga de casas simples,
com ranchos de canoas ao lado,
varais para estender as redes de pesca,
jiraus de secar peixes,
as crianças brincando nos quintais
e os anjos da guarda sossegados,
porque no meio dos guris
quem mais se diverte é o menino Jesus.









Flores no jardim de Deus


No meio da boniteza da mata
é comum encontrar canteiros naturais
de lírios-do-brejo
ou de mariquinhas-da-serra
com uma ou outra flor
carregada pelo vento
ou será borboleta?


sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Dê-me sua mão



A vida é uma aventura
que se desdobra em vários atos
que avançam por muitos caminhos
e nenhum deles foi feito
para desbravarmos sozinhos.
Paisagens se sucedem,
experiências, gostos e rostos
enriquecem a memória
e a idade traz a certeza
que o sal de viver será mais apreciado
quanto mais compartilhado.


quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Arte para viver


Um viva para o artista
que trabalha em ofício
de cultivar o chão,
ou de peão de gado,
ou de operário em construção,
com um violão na cabeceira da cama,
que é ponteado à noite e fins de semanas,
apresenta-se em porta de bar,
ou em dança em roda de quintal,
com notas tiradas nas cordas e no tampo,
temperadas por cerveja e cachaça
até entortar os ritmos
subverter as melodias,
fazendo mais claras as noites,
tornando mais alegres os dias.

domingo, 29 de outubro de 2017

Assim na Terra, como no Céu



Perto de mim mora um anjo
de cabelos brancos
que depois de cuidar dos seus,
vai dar atenção aos próximos,
vai auxiliar alguém doente,
faz compras para idosos,
ou fica um tempo sozinha
cantarolando baixinho.
Gosto de ouvir suas músicas
que extravasam tranquilas alegrias.
Queria que fosse assim
a completude de meus dias.





quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Prioridades




Vovô plantava banana, mandioca,
cana-de-açúcar, feijão...
Vovó cultivava rosa, jasmim,
cravo, margarida, gardênia...
Vovô José enchia as nossas barrigas,
já as nossas almas
eram alimentadas por Vovó Eugênia.

À caça de poesia


O poeta é esperto,
vestiu uma roupa camuflada
e ficou na moita, mimetizado e calado,
para caçar poesia e obteve êxito.
Um bichinho serelepe desceu
para procurar sementes no chão,
as árvores se acalmaram,
a cachoeira recomeçou a escachoar
e as saracuras voltaram a andejar -
pausa para uma nota de tristeza pelas aves
que perderam o conhecimento de voar...








terça-feira, 24 de outubro de 2017

Roteiro de viagem




Vá, já que partir é preciso
e que os horizontes atraem
quem quer superar os obstáculos,
vá descobrir o que tem além das montanhas.
Vá, mas Leve o mapa com a rosa dos ventos
com as rotas e rumos para ir,
leve uma porção de areia da nossa praia,
leve um retrato da pessoa mais querida,
leve uma medalha de Nossa Senhora Aparecida,
leve nossa história na memória.
Vá, mas leve o mapa com a rosa dos ventos
com os atalhos do retorno caso não encontre lá
o que você já tinha cá.

Canção da saudade



Arrumei a mesa da varanda
e comecei a corrigir os testes escolares
quando escutei o pássaro sem-fim
a cantar em algum lugar
entre as árvores da mata
e fim dos anos 1970
na casa de meus avós
na restinga do Sapé
entre os pés de cajueiro
e as crianças lá brincando
de imitar o canto dos pássaros
de pendurar nos galhos
de dar trabalho aos anjos da guarda.
Saudades sem fim.


https://www.youtube.com/watch?v=Cu0a4rAxURo

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

fenômenos


Eu vi flores
se transformarem em borboletas;
eu vi o sol pulsar
como bate um coração
e eu vi uma mulher
se transformar em dança e canção.
Preciso trocar de óculos
ou voltar a pôr os pés no chão:

Bendita Dona Benedita


Bendita seja Dona Benedita,
das receitas que nutrem o corpo
e da doçura que alimenta o coração.
Bendita seja Dona Benedita,
suas palavras na hora certa,
sua torta de palmito,
seu caldinho de mandioca,
seu bolinho de carne-seca,
sua galinha com hortelã,
seu curau de milho verde
e seu doce de mamão.






domingo, 15 de outubro de 2017

Mar das lendas




O caiçara saiu de madrugada para pescar
nas águas da Ilha Vitória,
içou a âncora, armou a vela, travou o leme,
deixou a canoa correr no sopro do terralão,
foi atacado de leseira e acabou dormindo.
Ai, que ventos e sonos foram fortes,
ai, que a Ilha Vitória ficou para trás,
ai, que para lá do horizonte tem o mar de fora,
ai, que depois tem o ponto sem retorno,
ai, que a embarcação foi para aquelas sendas,
ai, que o pescador foi navegar no mar das lendas.







sábado, 14 de outubro de 2017

História pra boi dormir





- Qual livro o senhor escolheria se fosse parar numa ilha deserta?
- Manual do construtor de barcos.
- Que frase gostaria de ouvir de amigos e parentes no seu velório?
- Olha, ele está respirando!
- Qual seu livro de cabeceira?
- Constituição Federal do Brazzzzzzzzzzzzzzz...





domingo, 8 de outubro de 2017

Era uma noite escura e tempestuosa



Alguém torrou a grana e não pagou a conta
das estrelas que não acenderam esta noite.
Nem sei como cheguei quase inteiro
Com tantas curvas e perigos no caminho.
Braços, pernas e anexos no lugar,
perdida, só uma vez, a calma.
Ah, também não sei onde ficou a alma.

Sinais do tempo


O cego Doquinha tocava seu violão
no banco da praça da vila de pescadores.
- Vamos embora, Doquinha, que logo vai chover!
- Menino, enquanto o vento soprar de leste,
e as nuvens continuarem a grimpar a serra,
vou ficando por aqui, me acabando de cantar,
continuando a viver.
Me avise quando as nuvens retornarem ao nascente,
quando o vento inverter.
Só depois, tenha fé, é que vai chover.






quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Evolução da vida




A alga foi o primeiro ser vivo a existir
e depois veio a bactéria,
bactéria se juntou em colônias
e virou molusco,
molusco com concha virou crustáceo,
crustáceo transformou-se em peixe.
A antiga alga saiu da água,
que deu origem à samambaia,
que derivou em gimnospermas
e angiospermas, inclusive coentro e limão.
Anota aí: molusco, crustáceo, peixe
coentro e limão.
Pode parar a história da vida
que já estão prontos a caldeirada e o pirão.




domingo, 17 de setembro de 2017

Manifesto poético democrático












De vez em quando dá a louca
na massa do povo brasileiro
que sai às ruas tangido
por lobos em peles de carneiro,
como aconteceu em certo primeiro de abril,
dia da mentira,
quando derrubararam João Goulart,
e apoiaram o atraso político,
como se não houvesse opção
naqueles anos sessenta,
apogeu de Carlos Drummond, Cecília Meirelles,
Mário Quintana, Manuel Bandeira...
Imagino o impacto histórico
se tivéssemos sido a primeira democracia de poetas,
uma república criativa de ideais,
um país sem ditadura militar...
Ainda hoje alguns preferem o tacão dos generais,
eu prefiro a liberdade poética já!

Old-fashioned


Um toque de doçura,
gelo sem exagero,
angostura, sim,
angústia, não.
Ah, e duas doses de bourbon.

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Baile para a lua

Vai ter canto, cantiga e cantochão;
requebros de tatu;
desfile de inhambu;
presença de curiango e urutau;
vai ter luz dos pirilampos
para fazer a iluminação;
- Lobo-guará? pode entrar!
- Bicho-homem? não entra não.




Qual é que é a tua, cacatua?



Não adianta pôr dentadura
para fazer o tapir
parecer onça-pintada;
é absurdo colar uma peruca
para a tartaruga-de-pente
pentear-se mais frequente;
e, ao contrário do que se pode pensar,
é de paz o bicho matamatá.





Melhor do que a realidade



Em dia bom o esquilo, serelepe,
cata nozes e sementes
para fazer estoques para o inverno.
E tudo isso para quê?
Segundo os desenhos de Walt Disney,
no tempo frio o caxinguelê lê.

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Luz e trevas

O vagalume (em qual bateria
ele recarrega sua energia?)
leva para a noite lampejos do dia.

Sinais




Antigamente os sapos gritavam alarmes
para Vovó retirar as roupas do varal
e vinha  chuva em seguida.
Esta é uma história muito antiga
de quando a primavera só começava
depois que o sabiá começava a cantar.






segunda-feira, 11 de setembro de 2017

História de herói



A primeira vez que me senti um super-herói
foi quando Vovó ouviu o grito do gavião
e mandou eu pegar o bodoque
para defender a criação.



Ver o que não existe


Tem dias que consigo ver
a ponte aérea Rio-São Paulo,
mas tem que ser em dias azuis,
com umidade suficiente nos ares
para o motor dos aviões deixar
um rabicho de vapor para trás.
Tem dias que consigo ver
uma coisa que não existe.

domingo, 10 de setembro de 2017

Cochilo



Tudo estava normal na vida
e na vila dos caiçaras,
homens saindo para pescar,
mulheres fazendo mil coisas,
crianças aprontando reinações,
rio se atirando na cachoeira,
vento agitando as árvores,
mas bastou o anjo da guarda cochilar
e deu a louca em três ou quatro pessoas
que partiram para a capital
para viver para trabalhar. Que sina!



Tia Joana












A casa de pau-a-pique
de Tia Joana,
escorada pra não cair
ao sopro do vento leste,
era cercada por um jardim
dos jasmins mais cheirosos,
de beijos de todos os feitios,
de brincos de todas as princesas,
de rosas de todas as cores,
de campânulas aos quatro ventos,
que Tia Joana colhia
e ajeitava em ramalhetes
para enfeitar o altar
da igrejinha da Praia da Fortaleza,
para alegrar São João Batista

que nunca teve tanta riqueza.

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Semente latente



Um caiçara sem praia
é Jorge Luis Borges sem os olhos,
trazendo para a luz as imagens
que compõem suas memórias,
mas que histórias!
Um marinheiro sem embarcação
é Herbert Vianna sem poder caminhar
que leva outros a viajarem,
mas que viagem!
Um pescador sem mar
é Ludwig van Beethoven sem audição
tirando músicas dos silêncios
para compor suas sinfonias,
mas que melodias!

Edificando castelos



Crianças que brincam nas praias
serão arquitetos ou arquitetas
porque desde cedo edificam
castelos na areia (e nas nuvens)
e mesmo que não cursem universidades,
tem todo um mundo na imaginação
de edifícios, jardins do futuro e arrabaldes.





segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Heranças

O avô do avô de meu avô veio de Portugá,
no tempo dos reis barbados,
porque tinha muita monotonia por lá,
chegou aqui em tempo de chuva,
passou alguns dias encharcado
até que uma boa alma tupinambá
ensinou, com a melhor técnica da pré-história,
a fazer uma tapera com folhas de guaricanga
para se abrigar.
Ah, se ele aprendesse a lição inteira...
ah, se ele aprendesse a descansar
e esperasse a chuva passar...
ah, se ele não conjugasse o verbo colonizar... 

domingo, 3 de setembro de 2017

Tempero da vida


Cantar os altos e baixos da vida
não é para qualquer um,
música alegre em tempo de fartura,
toada triste em tempo de carestia,
mas sempre com a confiança
que amanhã será outro dia.
Rádio a pilha em lugar alto
e violão em lugar baixo
por causa da criançada arteira.
Esse é o segredo da família Pereira

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Tati


O que o professor ensinou eu esqueci,
por causa do seu sorriso, Tati;
No retorno para casa o caminho eu perdi,
por causa do seu sorriso, Tati;
Não brigue comigo, tenha dó de mim,
por causa do seu sorriso, Tati.

Sofia



Eu vinha,
ela ia;
eu sorria,
ela, fria;
eu sofria,
ela, Sofia.

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

O maior mágico do mundo














Nélsono nome inteiro eu nunca soube,
era operário de construção
e, também, mágico amador,
que para o respeitável público
(nós, crianças da rua),
moveu papéis com a força do pensamento;
fez desaparecer e depois aparecer
pedras, sementes e gravetos
tocou fogo nos papéis e nada se queimou;
fez uma moeda atravessar uma tábua,
pôs sementes dentro de um chapéu
e retirou flores desabrochadas.
Batemos palmas de admiração e agradecimento,
ele fez uma mesura e se despediu.
Mas a magia maior, percebemos depois,
foi que virou uma grata lembrança
do nosso tempo de crianças.

sábado, 19 de agosto de 2017

Marinheiro sem mar


O que os pescadores fazem
quando são obrigados
a ficar em terra?
Reúnem-se com os amigos?
Vão à igreja? Cuidam da horta?
Fazem compras? 
Tocam violão? Fazem filosofia?
Bebem cachaça? Pensam em poesia?
Ficam enamorados?
Tudo isso eles fazem, só não ficam ancorados.

Atavismo












O pai, o avô e todos os antepassados
dos quais Silvário tem memória
foram pescadores e senhores do mar
e de um pedaço da restinga
no lado sul de Ubatuba.
Todo dia ele toma passagem em um ônibus,
desde o piemonte da Serra, onde agora mora
e vai até à praia, pisa na areia, molha os pés no Atlântico,
para manter viva a recordação, para alegrar o coração.



segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Caapora



Em matéria de angelologia
eu não estou tão por fora,
o anjo da guarda dos bichos do mato
acho que é a caapora.

domingo, 13 de agosto de 2017

Arqueologia familiar


Antes de pintar as paredes
rabiscadas e desenhadas
pelas mãos das crianças
é recomendável registrá-las em fotos
pois quando elas se tornarem
desenhistas, arquitetos, poetas,
vai ser possível entender
como tudo começou.

domingo, 6 de agosto de 2017

Na camarinha da infância

Nossa cama era uma tarimba,
com esteiras de taboa,
com travesseiro de macela.
Talvez seja por isso
que nosso sono
era tranquilo e revigorante,
ou porque o mundo
já foi mais aconchegante?

sábado, 5 de agosto de 2017

Não nos disseram que eles era heróis...













Quando Gandhi convidava
para fazer jejum pela liberdade, eu jejuei?
Quando Mandela pedia solidariedade à sua luta
pelo fim do Apartheid, eu me solidarizei?
Quando D. Oscar Romero
clamava por justiça social, eu escutei?
Quando Madre Teresa esmolava
para tratar dos párias do mundo, eu me sensibilizei?
Quando Chico Mendes foi morto, eu chorei?
Quando Lula liderou as lutas pelas diretas, eu lutei?
Quando R. Wallenberg desapareceu, eu o procurei?

domingo, 30 de julho de 2017

Criança não paga passagem













A imaginação do menino sentado na praia
embarcou na traineira que atravessou a baía
e foi pescar anchovas no mar de fora,
enfrentou procelas, quase foi ao fundo,
desviou da rota e conheceu meio mundo.
Como o sol já estava quase se escondendo
por detrás da Serrinha da Fortaleza,
o menino resolveu pôr os pés no chão
e voltar para casa.
Amanhã, quem sabe,
daria para avistar um navio cargueiro
passando por fora da Ilha Vitória
para o levar mais longe, para uma nova história.

poesia do cotidiano












Peixe, farinha, banana
eram do nosso lugar,
de fora só a pimenta do reino,
que tratamos logo de plantar
e cresceu abraçada
ao coqueiro no quintal.
Quando a gente abria um coco,
vovô o provava, piscava os olhos
e dizia que a água estava apimentada.

quinta-feira, 27 de julho de 2017

O lado de cá do mundo









Eu tava de bem com a vida,
aprendendo a ser caiçara,
brincando de pescar,
aprendendo a nadar,
brincando de remar canoa,
levando tudo numa boa,
quando me puseram roupa nova,
sapato de machucar os dedos
e me mandaram para a escola
para aprender os segredos
de decifrar os símbolos, alinhar as letras
e repetir as fórmulas.
Quando pensei que tinha acabado,
que já estava livre,
que podia voltar para a praia em que nasci,
me mandaram para outro grau
para aprender os mandamentos,
respeitar a disciplina,
ter uma profissão de verdade,
porque o país precisa de mim.
E eu? Alguém sabe que para viver
eu preciso de gêneros de primeiras,
segundas, terceiras e outras necessidades,
tipo, ar, água, carinhos, alimentos
e mais um pouquinho de mar
para pôr meus sonhos para navegar?





Canção do mar













O ritmo das ondas do mar
é a primeira canção de ninar
que põem as crianças caiçaras
para dormir e sonhar
com os horizontes amplos
e a vida mais livre
no território sem cercas
do latifúndio oceânico:
o peixe é de quem o pescar;
o tesouro é de quem o achar;
meu parente levou uma garrafa de cachaça
em troca de um pedaço de âmbar.

sábado, 22 de julho de 2017

Cordeiros de Deus













Depoimento da caiçara Astrogilda da Conceição:
Os jagunços do inglês estavam expulsando todo mundo
e nós também fomos ameaçados, saí correndo atrás de um deles
com a enxada na mão. Mas, um dia, voltando da roça,
encontramos a casa derrubada, as panelas furadas,
e fomos obrigados a sair, sem nada, nem panelas,
fomos expulsos da nossa praia, Praia do Pulso,
com um chão de areia tão gostoso de pisar,
das nossas plantas, das nossas árvores de frutas,
fomos expulsos do paraíso por um bando de demônios.
Para onde, meu Deus?

sexta-feira, 21 de julho de 2017

Surpresas














Encontrar araçá madura
no meio do mato;
achar um beijo
que se julgava perdido;
receber a visita de uma borboleta
que andeja mais que voa;
abrir a tampa da panela
e descobrir que tem galinha com quiabo;
abrir um livro e perceber que é melhor
do que se esperava,
como aconteceu quando li
Huckleberry Finn,
Cozinheiros Demais,
Sagarana, Sapato Florido...



sábado, 15 de julho de 2017

Memórias de Seu Oliveira






Eu morava,

trinta passos contados, sessenta anos passados,
na vizinhança do mar, no cantinho dos recifes,
na Praia da Fortaleza (Município de Ubatuba).
Minha janela era como um quadro
de moldura fixa e tela animada
e cada dia trazia detalhes diferentes
para a paisagem diante dos meus olhos:
uma gaivota aqui, um peixe que pulava além,
um barco que passava longe
e as ondas bem comportadas em tempo bom,
mas metendo medo em dia de tempestade.
Só o que sobrou daquele tempo é o que eu guardo
em um cantinho da minha saudade.

Limão cravo


Lembro da casa dos meus avós
rodeada de laranjeiras, cafeeiros,
duas jabuticabeiras,
dois coqueiros altíssimos
e incontáveis bananeiras.
Tenho doces lembranças
até do limoeiro no quintal
e seus frutos azedos.



sexta-feira, 14 de julho de 2017

Ubatuba, 1970







Dona Eugênia, minha avó, acordou cedo,
mexeu nas cinzas do fogão a lenha,
soprou a brasa dormente,
que despertou o fogo nos gravetos,
que incendiou a lenha.
Logo um bule de água fervente,
ao qual foi adicionado pó de café,
começou a espalhar um cheiro bom
que chegou até ao quarto
onde eu sonhava com o café feito por Vovó.

domingo, 9 de julho de 2017

Preguiça

Domingo depois do almoço
Tudo ficou suspenso,
Os pássaros silenciaram
E o vento parou.
Algum preguiçoso
Deixou o serviço incompleto
E o céu ficou pintado
Só com umas pinceladas de branco.

Radicais


Esses pilotos de acrobacias
que fazem piruetas
sobem até às nuvens
em seguida dão rasantes,
onde foi que aprenderam
a dar susto na gente?

sexta-feira, 30 de junho de 2017

Muro da vergonha

















Duas crianças fazem acenos para os avós
de cabelos encanecidos.
Os avós estão na janela de um prédio,
as crianças estão no chão,
na terra de ninguém.
Entre avós e netas tem o arame farpado
na faixa do futuro muro de Berlim,
e guardas armados para separar
o amor entre pessoas que se amam
de um lado tem a Alemanha,
de outro, também.
Ai, a imbecilidade desumana!

O Rio  Grande separa dois mundos,
 ao norte, os EUA, ao Sul, o México.
Às margens do rio se reencontram
as famílias separadas há longo tempo
e dão abraços e choram nos ombros
uns dos outros
pelo tempo cronometrado de três minutos.
De um lado têm seres humanos, de outros também.
Ai, o poder ainda continua com os brutos.

domingo, 25 de junho de 2017

Ilha Vitória











Têm poucas visitas na Ilha Vitória
onde barco não atraca
por falta de cais,
por falta de praia.
Seus frequentadores mais ilustres
são baleias-jubartes, tubarão aniquim,
arraias-mantas e o peixe mero.
Dizem que, quando a Lua está cheia,
mostrando sua face mais bonita,
é justo ali que boia o peixe-lua,
só para admirá-la,
aquele velho selenita.





Sem muros, no wall.

O lugar onde nasci
não tinha muros
para separar as casas,
desunir as famílias
ou distanciar as pessoas.
Nós, crianças, passávamos de um quintal
para outro e os cachorros
nem davam alarme porque nos conheciam,
éramos todos uns viralatas.



Boas vizinhanças




Eu não preciso de despertadores
Mecânicos ou eletrônicos,
Pois moro em uma casa
Com uma família de corruíras
Em um buraco da parede
Por direito de usucapião,
Pois lá residem desde o  início da construção.
Na fase do reboco eu não tive coragem
De obstruir a porta da casa dos vizinhos,
Alguém teria?
Achei melhor deixar tudo como estava
E escrever uma poesia.

sexta-feira, 23 de junho de 2017

Perdidinho

Muitas vezes me perdi
no caminho entre a minha e sua casa
e cheguei muitas vezes atrasado
porque tinha que atravessar
um trecho de mata com muitas árvores
e respectivas consequências:
flores, frutos e pássaros.

quinta-feira, 22 de junho de 2017

Poema feito com Dora


A Bahia fica mais perto do que muita gente pensa,
está presente na alma,
nos livros,
nos ritmos que uniu o Brasil à África.
A Bahia se espalhou por todo o país
nas aves de arribação,
nos caminhos da migração,
no fundo do coração.

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Evolução da espécie










Tem pessoas que mergulham
tão de cabeça no mar
e ficam tão envolvidos com a diversidade
que há no planeta água,
que é preciso lembrá-los
que ainda não são 100% peixes.
Tem pessoas que pulam de montanhas
e vão planando até voltar,
mesmo contra a vontade,
a pôr os pés no chão,
que é preciso lembrá-los
que ainda não são 100% pássaros.
Contudo, se persistirem, um dia o serão.

domingo, 11 de junho de 2017

Dica




É à esquerda que bate o coração.
Por que tem tanta gente perdida
na era da informação?

Detalhes


As cores da saíra sete-lenços,
a dança do tangará,
o gosto do caqui,
o cheiro da tangerina,
a alegria dos botos,
o verde de seus olhos,
o rio que desce da serra.
Deus criou alguns detalhes
só para enfeitar a Terra.

Mensagem para Órion



Aqui na Terra continua a ter
ricos e pobres,
ostentação e penúria,
fome e desperdício,
guerras declaradas e, outras, não declaradas,
balas direcionadas e, outras, perdidas.
O dinheiro detém  o poder político
e, também, as consciências.
Mas ainda não se recomenda
descartá-la em um black hole,
ainda há esperanças
de tirar os neuróticos do controle.

Tá frio














Em Ubatuba a corrente polar atlântica
tocou as baías e enseadas
trazendo pinguins do sul do mundo
e também tainhas
que, na madrugada, o caiçara vai cercar
com rede de picaré e cachaça,
quem vai no calão de fora
tem direito a dose dupla.
Passem isso adiante
até chegar a Campos do Jordão,
álcool é um ótimo anticongelante.

segunda-feira, 5 de junho de 2017

A voz da natureza


As pessoas falam e as folhas farfalham,
mas o que elas farfalham?
Neste momento, aqui em casa,
elas estão farfalhando 
que está chegando uma frente fria,
que está na hora de comprar aipim
para preparar caldinho,
para você voltar para mim.


sábado, 3 de junho de 2017

Herança poética





Antigamente não tinha essa história
de dividir a terra em lotes
e as pessoas em classes
porque o bicho tinha que ser pego à unha
em esforço conjunto,
não fazia sentido ser egoísta
e se dizer dono dos rios,
das árvores, dos campos plantados
por Deus - God - Dios.
Naqueles tempos as pessoas
se expressavam por poesias
das quais restaram as palavras bonitas
que recebemos de herança:
latitude, aurora, saudade,
vagalume, amor, esperança...