Não contaminada

Chamei Marcelinha e arrumei
os pés trocados dos chinelos tortos.
- Ufa, respondeu ela,
estava pensando que meus pés encolheram.
Achei uma graça e tirei um bombom
de sua orelha
e ela nem ficou admirada.
Criança vive no mundo dos sonhos,
só pode!

Estrelas variáveis

- Aquela estrela
está piscando para mim,
apontou minha amada.
Eu ia comentar que é uma estrela variável,
do grupo das cefeidas
e que é natural a variação da luminosidade,
mas somente a abracei,
porque alguns momentos são da astronomia,
outros são da poesia.

Entre rios

Eu tive uma namorada
que se fazia de iara
sobre as pedras do rio
e ficaria a vida toda
entre remansos e corredeiras,
não fosse a curiosidade de estranhos
e a inclemência do frio.
Eu tive uma namorada louca,
louca por cachoeiras.

Curtinha

Será que vai para o passado
esta estrada
marcada por pés descalços,
rodas de carros e
patas de cavalos?

Banquete

Entre tantas opções servidas à mesa,
a mulher bonita pegou salada,
frutas e um pouco de massa.
Carnes?
Só um pedacinho de coração,
mas como dói.

correio aéreo

Em papel de fazer pipa
Escrevi uma carta de despedida
para uma pessoa querida
que se fez distante,
icei-a ao vento e cortei o fio.
Ela viajou além das serras
rumo ao coração do Brasil.

Poema de encomenda

Ferimento sentimental
costuma ser chaga não cicatrizada
que dói na direta razão
de quanto a pessoa é mais querida.
Taí sua poesia,
agora tire o dedo desta ferida.

Bem-querer

Fica uma semente da gente,
fica um pedaço da alma,
permanece o eco das palavras,
permanece o carinho suave,
resta a lembrança do tato
na mais antiga aula
do conhecimento do outro
e que não se aprende
em nenhuma academia:
anatomia.

Canção do estio

Cirros, altos estratos,
estratos cúmulos,
cúmulo-nimbos e
nimbos-estratos
dos domínios celestiais,
trazei-nos água,
irrigai nossos campos
e voltai a percorrer
nossos céus estivais.
Cirros, altos estratos,
estratos cúmulos,
cúmulo-nimbos e
nimbos-estratos
bem-vindos sejais,
chovei em nossas serras,
enchei nossos rios e
alagai os pantanais.

Além da viagem

No começo não tinha estradas
e a gente ia aos lugares
por trilhas centenárias
feitas em primeiro lugar
pelos bichos que andam em carreira:
caititu, paca, tapir, formiga de correição…
a gente ia mais longe antigamente,
porque viajava a pé.

Hai-kai

Qual primeiro cairá no esquecimento:
um castelo de nuvens
ou uma torre de aço e cimento?

O poeta Manuel

Antes da reforma ortográfica
Houve um médico
Que condenou Manuel
A morrer ainda rapaz
De pthísica, coitado,
Igual a muitos poetas.
Manuel ficou abalado
Manuel ficou indignado
E depois radicalizou
E morreu parnasiano
E ressuscitou moderno
Com todos seus dentes
Salientes
Com novos versos
Calientes
E queimou
A má-sina em praça íntima
E construiu de verso em verso
A Estrela da Vida Inteira
Arretado Manuel Bandeira!

Sapo-martelo

Pam… Pam… Pam…
É o sapo-martelo
Ou sapo-marceneiro
Que vive nos pântanos
Pregando tábuas
A noite inteira
Tão barulhento
Tão convincente
Que, ao raiar a luz do dia,
Em vão, saio para a vistoria,
De suas obras de marcenaria.

O barco dos sonhos

Durante a noite trovejou
Após o galo cantar
Em seguida o vendaval
Começou a fazer miséria
No alto da Serra
E abateu-se na planície
Com tanto estardalhaço
Que acordou o menino
Que pensou que já era grande
E ficou encolhido em sua caminha
Debaixo do cobertor
Só com o seu temor
E não chorou.
Depois veio o anjo da guarda
Com a bênção do sono
Porém, o vendaval do quintal,
Passou para o sonho do guri,
E pôs a pique o barco Taurus,
Que sempre tinha navegado
Nos sonhos da criança
E o resto é lembrança.

Liberdade, ainda que à tardinha

Que será dos descendentes
Do finado Tiradentes?
Sobreviveram à Maria Louca?
Vivem de fartura ou de coisa pouca?
Ainda lutam por liberdades?
Riem desbragamente,
Ou sorriem entredentes?
Cursaram faculdade de odontologia
Ou enveredaram na política?
Quem boas notícias souber,
Favor divulgar,
Pra reacender a esperança
Aos inconfidentes daqui.

Prenúncio

Gosto do discurso barulhento do trovão
que de longe se faz anunciar
com o estardalhaço que faz
e nos permite escapar
a tempo de achar aconchego e paz.

More than titles

Another day in paradise
my love, i saw you
in boulevard of broken dreams
daylight in your eyes
you can also see
message in a bottle?
God only knows
i’m a believer…
where are you?
walking in the moon?
please come home for Christmas.

Seca braba

A mata que foi derrubada
protegia uma nascente
que alimentava um córrego,
que corria para um ribeirão,
que levava água para a represa,
que matava a sede na capital
da nova região semi-árida,
de um novo bioma nacional?

Picaré

É preciso boa técnica na pesca com picaré:
calão rente ao fundo,
atenção na virada da maré,
o homem de fora tem que ser
o mais alto do mundo,
sem esquecer de ter tenência
que os peixes pequenos
tem direito à sobrevivência.
Os pescadores de picaré
sabem por experiência que,
assim na vida como no mar,
a gente só puxa a rede
e o peixe é Deus quem dá.

Haicai

Um papo de arte dali
um surrealista daqui
um Salvador Dali.

Versos ao vento

Eu estava de boa
pensando numa ideia pra poema
quando veio a ventania
espancando portas e janelas
e espalhou palavras e versos
pra tudo quanto é lado
e não consegui juntá-los mais.

O caso do deputado

Eu tenho um gato
que a gente passou a chamar de deputado
porque some em alguns dias da semana
e quando volta nem dá explicações.
Sua excelência tem porte garboso,
tomou conta do sofá, não gosta de ração
e tem preferência, durante o verão,
por leite on the rocks.
Uma amiga deu a sugestão
de castrar o deputado
só pra ele ficar mais caseiro.
Quase rompi a amizade,
isso não se faz com um deputado brasileiro.