terça-feira, 31 de dezembro de 2019
Alfabetização
Compreender o que está escrito no céu
para saber o comportamento do tempo,
fazer a leitura do mar
para saber se o dia está bom para pescar,
interpretar o vigor da terra
e das colheitas que ela dará,
descortinar as almas das pessoas
em suas palavras e ações
são as leituras essenciais,
são as mais importantes interpretações.
Sinais no céu, sinais na Terra
Quando o Anjo do
Senhor,
que deixou a Terra para a gente cuidar,
voltar para fazer o inventário do mundo,
vai querer saber dos rios, florestas,
bichos da terra, do céu e do mar;
dos berçários da vida nas matas,
bichos da terra, do céu e do mar;
dos berçários da vida nas matas,
manguezais e areais.
Depois ele vai procurar, em dias de devoção,
nas capelas diante das praias,
os filhos e netos de pescadores
e poucos estarão lá.
E o que nós vamos falar?
segunda-feira, 30 de dezembro de 2019
Avô rico
Meu avô foi rico, muito rico,
com terras que davam muitas pratas, ouros,
bananas da terra e nanicas.
Além de uma linda queda d'água
em um riacho bem comportado,
exceto em dias de trovoadas,
a maior riqueza que tinha
era um rádio Semp-capelinha.
sábado, 28 de dezembro de 2019
Feliz 2020
Esperança não é uma palavra abstrata,
ela vem com a rede cheia de peixes,
ela é colhida nas safras generosas,
ela sorri com o casal enamorado,
ela caminha nos passos de um bebê,
ela está nas palavras de incentivo,
nas mãos generosas,
no amor de pai e mãe,
nas boas novas dos profetas,
na união que vence o tirano,
na construção do mundo novo,
nos braços que preferem abraçar...
Não, a esperança é um substantivo concreto
e a igualdade também logo o será.
Os nomes do povo
São nomes de santos
João, Antônio, Teresa, Maria...
São nomes de reis
Fernando, Henrique, Isabel, Beatriz...
São nomes de filósofos
Cícero, Alcides, Euclides...
São nomes de germânicos
Rodrigo, Ludovico, Gertrudes...
São nomes de mouros
Omar, Almiro, Fátima, Palmira...
São nomes ibéricos
Manuel, Leonor, Matilde, Diogo...
São nomes indígenas
Moema, Moacir, Iara, Araci...
São nomes estrangeiros e são nomes caiçaras,
são nomes de longe e são nomes daqui.
Pessoas humildes, grandes almas
Além do alto da Serra
onde o Céu está mais perto da Terra
vive João Pobrezinho,
dono de um sítio pequeno,
mas com o Rio Paraibuna nos fundos.
Ele cultiva o próprio feijão,
tem algumas galinhas para cuidar
e o resto do dia ele desperdiça em viver:
conversa com os amigos na praça da vila,
vai na capelinha fazer oração
e visita o covo para retirar os peixes da armadilha,
pega para si um só
e o restante distribui com a vizinhança e diz:
um só me basta, amanhã Deus me dará mais.
Pensem em um homem feliz!
domingo, 22 de dezembro de 2019
Lembranças do mundo caiçara
Minha família toda pescava,
meus avós e meus tios tinham redes e canoas
e viveram da generosidade do mar
até quando existiram manguezais
e os peixes podiam se reproduzir,
até quando os rios eram limpos
e levavam só água doce para temperar os oceanos,
até quando existiam jundus
para moradia da batuíra e do guaruçá,
até quando Nosso Senhor tinha, em cada casa,
oratórios e corações para se aconchegar.
Tempo bom
Céu obscurecido por nuvens pesadas,
ar parado,
pássaros com voos mais curtos,
a praia vazia de pessoas
e a natureza na expectativa
do aviso que logo vem:
um açoite de relâmpago
no alto do morro
e um trovão que desperta o mundo,
que faz correr as mulheres
para tirarem as roupas do varal,
aos adultos faz se abrigarem nas casas
e às crianças... cadê as crianças?
Estão agora no terreiro
fazendo a coreografia da chuva e outras danças.
quinta-feira, 12 de dezembro de 2019
A paisagem distorcida
Vista pela vidraça
fosca
É uma lembrança tosca
Do que acontece lá
fora...
E se todo esse
firmamento
Com seus milhões de
pingentes
for apenas uma pálida
imagem
do verdadeiro céu
detrás de enganadoras
lentes?
Ovo de indez
Seguindo o exemplo
de Vovó Eugênia
que
com suas galinhas
não admitia talvez,
quando percebo
que meus versos
estão aíbos,
por minha vez,
leio e releio
Mário Quintana
e Manuel Bandeira
que são meus ovos de
indez.
Outras sabedorias
- Zé Almiro, onde você foi homem?
- Fui à praia, fui ao mar
ver a cor do tempo,
ouvir a voz das ondas,
escutar a arenga das gaivotas
porque um homem precisa ficar informado
das coisas que importam,
amanhã não vou à pescaria.
E tão forte veio a tempestade
que a noite invadiu o dia.
- Fui à praia, fui ao mar
ver a cor do tempo,
ouvir a voz das ondas,
escutar a arenga das gaivotas
porque um homem precisa ficar informado
das coisas que importam,
amanhã não vou à pescaria.
E tão forte veio a tempestade
que a noite invadiu o dia.
O time da nossa praia
Os jovens jogavam
futebol de praia
no domingo de manhã,
porque de tarde havia
missa.
O dia ainda estava
claro
e o badalo batia bão
balalão,
igualzinho ao sino
de Manuel Bandeira.
E todo mundo se
dirigia à igreja
para conversar, se
informar,
rezar e cantar,
especialmente para
Santa Maria,
Mãe de Deus:
Ave, Ave, Ave Maria
...
Ai de quem não fosse
à Missa,
ai de quem se
portasse como incréu,
na partida seguinte
perderia a vaga no
time e no céu.
Segredo culinário
Entre o cheiro de coentro,
limão e outros temperos,
preparo um peixe para a família
e peço ajuda pra mulher.
Ela chega de mansinho
e pergunta se beijar o cozinheiro
melhora a receita.
Sim, respondo, é muito eficaz,
vai ficar com gosto de quero mais.
limão e outros temperos,
preparo um peixe para a família
e peço ajuda pra mulher.
Ela chega de mansinho
e pergunta se beijar o cozinheiro
melhora a receita.
Sim, respondo, é muito eficaz,
vai ficar com gosto de quero mais.
O segredo da farinha de mandioca
Filhos e netos
transportavam,
descascavam,
lavavam,
ralavam,
prensavam
para tirar o veneno
da mandioca brava,
enquanto Vovô
forneava,
controlando o calor
e o ponto certo,
para fazer a gostosa
farinha da terra,
farinha do céu.
Os pássaros não morrem
Exceto por maldades como
bodocadas e arapucas,
os pássaros não morrem.
Pesquisei no mato,
espiei sob as fruteiras,
questionei o bem-te-vi
e cheguei à conclusão,
após percorrer esse mundéu,
que os pássaros não morrem:
sobem em corpo e alma ao
céu.
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